“Porém, ela lhes dizia: Não me chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém, o SENHOR me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o SENHOR se manifestou contra mim e o Todo-Poderoso me tem afligido?” (Rute 1.20-21).
Introdução
O dramaturgo alemão Goethe disse que a história de Noemi e Rute é “a mais bela história curta do mundo, a mais bela história curta já escrita”.[i] Trata-se de uma narrativa formidável, na qual a graça de Deus se revela de maneira cativante nas vidas de duas mulheres viúvas. A história de Rute mostra de forma inequívoca como Deus sempre está envolvido no cuidado providencial com o seu povo, seja no melhor dos tempos ou no pior dos tempos.
E quando lemos o livro de Rute nos deparamos justamente com o pior dos tempos, como o próprio início nos informa: “Nos dias em que julgavam os juízes” (Rute 1.1a). Há uma conexão óbvia com o final do livro anterior: “Naqueles dias […] cada um fazia o que achava mais reto” (Juízes 21.25). Os dias de Noemi eram do tipo “piores tempos”. Tratava-se de uma época terrível na qual perdurava a anarquia e as constantes guerras. No que diz respeito à história de Noemi, dois lugares formam o palco: Belém e a terra de Moabe. Isso é interessante, visto que, no período dos juízes o povo de Israel chegou a ser oprimido sob o domínio moabita durante dezoito anos (Juízes 3.12-14). Interessantemente, logo depois, Israel subjugou Moabe durante oitenta anos (Juízes 3.30). O que fica evidente é que a história de Israel e Moabe é marcada por profunda hostilidade.
No capítulo 1 de Rute lemos que “um homem de Belém de Judá saiu a habitar na terra de Moabe, com sua mulher e seus dois filhos” (v. 1). O homem se chamava Elimeleque e era esposo de Noemi. Ele partiu de Belém com ela e seus dois filhos: Malom e Quiliom. É interessante que, apesar de o nome de Elimeleque significar “Deus é rei”, ele deu a seus dois filhos nomes cananeus em vez de nomes hebreus. De acordo com Barrs, “isso pode ser uma indicação da sua própria falta de fé pessoal no Deus único e verdadeiro e seu próprio modo de fazer o que achava mais reto aos seus próprios olhos, visto que os nomes eram de grande importância naquela cultura e revelavam esperanças e aspirações dos pais para seus filhos, além de revelarem suas crenças”.[ii]
Elimeleque e sua família deixaram a terra de Belém e foram para Moabe em virtude de uma severa fome que assolava a terra. É no mínimo irônico que na cidade conhecida como “Casa do pão”, isto é, Belém, não houvesse pão. Não se sabe o que causou esta fome, podendo ter sido o mau tempo, estiagem, algum outro desastre natural e até mesmo o resultado de convulsões políticas em Israel. Não é impossível também que a fome fosse uma manifestação do juízo de Deus sobre o povo de Israel por causa da sua desobediência, de acordo com os termos do Pacto em Deuteronômio 28.
Em Moabe, Elimeleque morreu pouco tempo depois da chegada (v. 3). Seus dois filhos tomaram como esposas duas moabitas: “era o nome de uma Orfa, e o nome da outra, Rute” (v. 4), desobedecendo, assim, o mandamento do Senhor no sentido de que o povo do Pacto não tomasse as filhas dos povos pagãos por suas esposas (Deuteronômio 7.1-3). O que Malom e Quiliom fizeram era algo comum no período dos juízes: “Habitando, pois os filhos de Israel no meio dos cananeus, dos heteus, e amorreus, e ferezeus, e heveus, e jebuseus, tomaram de suas filhas para si por mulheres e deram as suas próprias aos filhos deles; e rendiam culto a seus deuses” (Juízes 3.5-6). Todavia, quis a providência divina que dez anos após a morte de Elimeleque, Malom e Quiliom também falecessem, deixando, assim, Noemi, Orfa e Rute completamente desamparadas. Diferentemente do que ocorre na maioria dos países ocidentais, que possuem leis para proteger as viúvas, Noemi e suas noras ficaram completamente desoladas.
A Amargura de Noemi
Sem nenhum amparo em Moabe, e ouvindo que em Belém já havia pão novamente, Noemi se dispõe a retornar para Belém (v. 6). Ela agora era uma mulher viúva, sem filhos, pobre e idosa. Todavia, a resposta de Noemi à providência divina não foi em termos de um simples retorno para sua terra. Antes, ela entesourou em seu coração uma profunda amargura. Isso fica claro na sua palavra às suas duas noras: “Voltai, minhas filhas! Por que irieis comigo? Tenho eu ainda no ventre filhos, para que vos sejam por maridos? Tornai, filhas minhas! Ide-vos embora, porque sou velha demais para ter marido. Ainda quando eu dissesse: tenho esperança ou ainda que esta noite tivesse marido e houvesse filhos, esperá-los-íeis até que viessem a ser grandes? Abster-vos-íeis de tomardes marido? Não, filhas minhas! Porque, por vossa causa, a mim me amarga o ter o SENHOR descarregado contra mim a sua mão” (vv. 11-13). Noemi considerava que a pesada mão do Senhor estava contra ela. Suas palavras não são desprovidas de dor e de acusação. Diferentemente de Jó, que em todas as suas ponderações a respeito do que lhe ocorrera “não pecou, nem atribuiu a Deus alguma falta” (Jó 1.22; cf. 2.10), Noemi pronuncia “um lamento acusando Deus de estragar a vida dela cruelmente”.[iii]
As palavras de Noemi no final do versículo 13 trazem consigo a ideia de que o Senhor era seu inimigo. A expressão “contra mim a sua mão” denota a oposição do Senhor contra os seus inimigos: “Também foi contra eles a mão do SENHOR, para os destruir do meio do arraial, até os haver consumido” (Deuteronômio 2.15); “Por onde quer que saíam, a mão do SENHOR era contra eles para seu mal, como o SENHOR lhes dissera e jurara; e estavam em grande aperto” (Juízes 2.15). “Aos olhos de Noemi, Yahweh atacou-a como seu inimigo!”[iv] A resposta de Noemi ao seu sofrimento era um reconhecimento tácito da soberania de Deus sobre a sua vida, mas não da sua bondade para com ela. Em seu pensamento Deus não a tratara com bondade: “Noemi estava longe de estar convencida de que Javé é bondoso. Conquanto reconhecesse a bondade de Rute e Orfa para com ela (Rt 1.8-9), Noemi[sic] nada disse sobre a bondade do Senhor para com ela”.[v]
O tom de acusação contra o Senhor pode ser visto também nos versículos 20-21, após a sua chegada a Belém: “Porém ela lhes dizia: Não me chameis Noemi; chamai-me Mara, porque grande amargura me tem dado o Todo-Poderoso. Ditosa eu parti, porém o SENHOR me fez voltar pobre; por que, pois, me chamareis Noemi, visto que o SENHOR se manifestou contra mim e o Todo-Poderoso me tem afligido?” Noemi menciona dois dos nomes de Deus, duas vezes cada, a fim de tirar algumas conclusões a respeito da sua atividade providencial. Primeiro, ela usa o nome Shadai, que faz referência ao poder soberano de Deus sobre todas as coisas. A convicção de Noemi era que Deus havia exercido seu poder sobre a sua vida para tornar a sua vida amarga, sem brilho e sem sentido. Para ela, ao usar seu poder Deus a havia atacado com um mal terrível, como a uma inimiga. Segundo, ela usa o nome pactual de Deus, Yahweh, que possivelmente evoque a ideia de que o Senhor havia enviado sobre ela as maldições pactuais de Deuteronômio 28. No seu entendimento, tudo se tratava de uma vingança da parte de Deus, em virtude da infidelidade de seu marido e filhos. Não havia nenhuma empatia pelo seu sofrimento, nenhuma compaixão.
O fato, é que a amargura lançou raízes profundas no coração de Noemi. É importante entender que Noemi se encontrava irada contra Deus, afinal de contas, “a amargura é a ira internalizada”.[vi] Há quem entenda que Noemi não errou, que sua atitude foi uma demonstração legítima de honestidade acerca dos seus sofrimentos e que ela era verdadeiramente uma crente.[vii] Não há dúvidas de que Noemi possuía uma compreensão acerca da providência divina sobre sua vida. Ninguém questiona o fato de ela crer em Deus. Não obstante, o ponto a ser destacado é que ela, em momento algum, dirigiu uma oração ao Senhor, derramando diante dele a sua dor e a sua aflição. Diferentemente dos lamentos que encontramos no livro dos Salmos e em Lamentações, Noemi não orou a Deus.[viii] Antes, ela se limitou a se queixar de Deus para suas noras, numa clara demonstração de amargura, de ira entesourada em seu coração contra o Senhor.
Sua amargura fez com que aconselhasse suas noras a retornarem aos seus falsos deuses moabitas: “Disse Noemi: Eis que tua cunhada voltou ao seu povo e aos seus deuses; também tu, volta após tua cunhada” (v. 15; cf. vv. 8,11,12). Para ela, Yahweh em nada era diferente dos outros deuses. Na verdade, as palavras de Noemi deixam transparecer que havia mais segurança em retornar aos deuses tribais de Moabe do que em confiar em Yahweh. Assim, sua amargura a fez quebrar o primeiro mandamento.
Isso nos leva ao próximo ponto.
Publicaremos a segunda e última parte desse texto na próxima segunda.
[i] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women in The Bible. Wheaton, IL: Crossway, 2009. p. 123.
[ii] Ibid. p. 128.
[iii] Robert L. Hubbard Jr. Comentários do Antigo Testamento: Rute. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. p. 154.
[iv] Ibid. p. 160.
[v] Dean R. Ulrich. Da Fome para a Fartura: O Evangelho Segundo Rute. São Paulo: Cultura Cristã, 2011. p. 33.
[vi] Stephen Viars. Colocando o seu Passado no Devido Lugar: Seguindo em Frente em Plena Liberdade e Completo Perdão. São Paulo: NUTRA Publicações, 2012. p. 180.
[vii] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women in The Bible. pp. 130-131.
[viii] Sobre este assunto, recomendo a leitura dos excelentes livros: Robert D. Jones. Irado Contra Deus? Levando ao Senhor suas Dúvidas e Perguntas. São Paulo: NUTRA Publicações, 2010, 30p; Robert D. Jones. Ira: Arrancando o Mal pela Raiz. São Paulo: NUTRA Publicações, 2010, 224p.
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* Rev. Alan Rennê é Pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Tucurí, Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste, em Teresina -PI (2005), e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo -SP (2010). Cursa o Sacrae Theologiae Magister S.T.M, com área de concentração em Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo-SP. Escreve no blog Cristão Reformado.