32422_481188501931535_1258880419_nCrianças Idosas? O Evangelho e a adoção tardia “Qual o perfil da criança desejada?” – perguntou a recepcionista da defensoria pública. Aquela pergunta me deixou extremamente constrangido. “Como assim perfil?” – pensei surpreso. Senti-me como se estivesse no balcão de um açougue escolhendo carne para o jantar.

Eu e a Roberta ainda não havíamos pensado sobre isso, mas chegamos a uma conclusão: não são apenas os bebês que são dignos de adoção. Todas as crianças (independentemente de suas idades) precisam de lares amorosos e estáveis. Não entendo que a Bíblia restrinja o entendimento de que filhos são heranças do Senhor a bebês. Com isso não quero ignorar o que chamamos de experiência formativa, pois os primeiros anos de vida são de suma importância. Não quero ignorar, também, que criar filhos desde a infância até a vida adulta é um grande privilégio, e muito menos que adotar crianças mais velhas é muito mais complicado. Mas as crianças devem ser amadas não porque têm a possibilidade de serem “curadas”, mas porque são feitas à imagem e semelhança de Deus. E se Deus me adotou assim, sem perfil pré-definido, como poderia agir diferente? Como escolher? Um bebê? Branco ou negro? Com ou sem irmãos? Saudável ou com alguma enfermidade? Se Deus tivesse colocado critérios para me adotar, jamais teria me adotado. Como agir diferente?

A pergunta número 34 do Breve Catecismo de Westminster diz: Que é adoção? Adoção é um ato de livre graça de Deus, pelo qual somos recebidos no número dos filhos de Deus, e temos direito a todos os seus privilégios. [1]

Perfil? Critério? Nada disso! O texto do Catecismo é claro, não sou eu quem escolhe, é Deus, sem nenhum critério pré-definido.

Vamos entender melhor o que é adoção tardia. Adoção tardia é a adoção de crianças com idade superior a três anos, essas crianças são consideradas “idosas” para a adoção, e muitas foram abandonadas tardiamente pelos pais. Há ainda, aquelas que, devido a maus tratos, foram retiradas dos pais pelo poder judiciário já numa idade mais “avançada”, ou, ainda foram “esquecidas” pelo Estado desde muito pequenas em casas abrigo (caso do meu pequeno Samuel, que estava no abrigo desde os 8 meses e só aos 3 foi encaminhado para a adoção, sendo adotado aos 5).

De acordo com os dados do CNJ (2012), existem, hoje, 27.437 pessoas inscritas no Cadastro Nacional de Adoção e 4.914 crianças e adolescentes aptos a serem adotados. O levantamento foi feito em 10 de janeiro de 2012. Ou seja, existem centenas de pessoas querendo adotar uma criança e outras tantas esquecidas nas instituições. Onde está o desencontro, porque há tantas pessoas que encontram dificuldades na adoção? O problema é que que 91% dos pretendentes querem adotar crianças brancas; das pessoas inscritas no CNA (Cadastro Nacional de Adoção) 82,70% querem adotar apenas uma criança. Somente 16,20% querem adotar duas crianças. E o percentual dos interessados em adotar três crianças cai para 0,77%. Com relação à idade 17,97% querem adotar bebês com até 1 ano; 19,90% querem crianças de 1 a 2 anos; 20,50% querem crianças de 2 a 3 anos; 18,32% querem crianças de 3 a 4 anos. A proporção cai para menos de 1% (0,80%) para crianças com mais de 8 anos de idade. No que diz respeito ao sexo da criança, 33,23% querem adotar meninas e apenas 9,60% desejam meninos. São indiferentes ao sexo da criança 58,89% dos inscritos no CNA. No entanto, a maior parte das crianças disponíveis para adoção são pardas: 45,40%; outras 18,88% são negras; brancas somam 34,56%, e 1,16% não foi informado. 76,85% das crianças e adolescentes possuem irmãos. Ainda segundo o cadastro, 22,21% possuem problemas de saúde. [2]

Como a maioria dos pretendentes à adoção preferem meninas brancas com até três anos de idade, sem problemas de saúde e sem irmãos, o perfil exigido não encaixa no perfil disponível. Aí acontece o entrave. Por isso a demora na adoção e tantas crianças disponíveis, mas sem famílias que as desejam.

Não quero aqui romantizar a adoção tardia e nem afirmar que todos devem optar por ela. Sim, trata-se de um processo mais difícil, pois são crianças marcadas por graves pecados cometidos contra elas e por uma série de rejeições. Mas precisamos entender que é a nossa relação com Cristo que nos identifica. É a nossa identidade como adotados que nos faz adotar crianças, por isso, não devemos adotar crianças para preencher um vazio existencial, resolver problemas, melhorar a autoestima, preencher álbuns de família. Assim como a minha adoção em Cristo foi uma ato baseado na graça e misericórdia do Pai, sem que eu tivesse o “perfil” adequado, a mesma atitude deve reger a nossa adoção de crianças vítimas de abuso, maus tratos e negligência de seus pais biológicos. Quando isso acontece temos um duplo milagre: um milagre no coração de pessoas que se dispõem a entrar neste relacionamento, e um milagre na vida da criança que é inserida em uma nova família.

Mas quando penso neste assunto não posso deixar de me lembrar das palavras de Russel Moore “Imagine por um momento que você esteja adotando um adolescente. Durante o encontro com a assistente social no último estágio do processo, ela lhe diz que esse adolescente de doze anos tem sido submetido a psicoterapia desde os três anos. Ele persiste em queimar coisas e tenta repetidas vezes esfolar filhotes de gato vivos. Ele “se expressa sexualmente”, diz a assistente social, embora não entre em detalhes sobre o que ela quer dizer. Ela continua com uma pequena história familiar: o pai, o avô, o bisavô e o tataravô desse menino, todos tiveram história de violência, desde estupros até assassinatos em série. Cada um deles teve sua vida encerrada do mesmo jeito, morte por suicídio – todos foram encontrados pendurados, com cordas improvisadas com lençóis, em suas respectivas celas de prisão. Você vai querer adotar esse adolescente? Se você o adotasse, não manteria os olhos nele enquanto brincasse com seus outros filhos? Você o vigiaria nervoso, enquanto ele olhasse para a faca de cortar carnes em cima da pia? Você sairia da sala enquanto ele assistisse ao um filme de televisão com sua filha, e estando a luz apagada?”[3]

Acontece que eu era como esse adolescente: mau, invejoso, cruel, inimigo de Deus, inimigo dos filhos de Deus, e ainda assim Ele me adotou. Não é isso que Colossenses nos diz “e a vós que, outrora, éreis estanhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas” (1.21), “e a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos” (2.13). Eu particularmente fui adotado quando tinha dezoito anos. Eu não era um órfão no sentido biológico. Não era uma criança abandonada, porém, estava numa condição muito mais séria: eu era um estranho para a família de Deus, um escravo do pecado e objeto da justa ira de Deus. Eu nem percebia isso até que passei a ter contato com o evangelho e a igreja do Senhor Jesus. Conforme eu ouvia o evangelho, Deus abria meu coração para compreender e acreditar. Abandonei meu pecado e confiei na morte sacrificial de Jesus Cristo por meus pecados. Naquele momento, fui adotado em uma nova família. Deus, o justo juiz, tornou-se meu misericordioso Pai. Se você é cristão, se confia no sacrifício substitutivo de Cristo na cruz por seus pecados, você também foi adotado. Já seria extraordinário o suficiente se Deus simplesmente nos redimisse, perdoasse nossos pecados, nos declarasse justos. Se você já perguntou a si mesmo se Deus o ama, não se pergunte mais. Deus Pai o adotou, como seu filho, ou filha, mediante a pessoa e a obra de Cristo.

Então, porque uma criança mais velha também não pode ser alvo de um amor sem exigência? Não quero dizer que a prática da adoção, principalmente a adoção tardia, será sempre bem sucedida. Mas não adotamos crianças pelo sucesso desse empreendimento. Não tenho certeza que o Samuel será um servo de Deus, um bom marido, um bom filho, um profissional bem sucedido, não foi por isso que o adotamos. Adotamos porque fomos adotados, e fomos adotados tardiamente. Porque entendemos que a mesma graça e misericórdia da qual fomos alvos deve ser extravasada ao nosso próximo. Portanto, quero chamá-la para esse tipo de coragem sacrificial, que vê o caráter de uma criança não como geneticamente determinado, e nem determinado pelo ambiente em que ela viveu, mas determinado pela viva fé em Cristo Jesus, fé esta que só pode ser apresentada por uma família que verdadeiramente ama e obedece a esse mesmo Cristo.

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[1] Breve Catecismo de Westminster.

[2] www.cnj.jus.br/notícias/cnj/18283-cna-mostra-perfil-dos-pretendentes; www.cnj.jus.br/noticias/cnj/17938:exigencia-de-pretendentes-e-entravena-adocao.

[3] Moore, Russel D. Adoção – sua extrema prioridade para famílias e igrejas cristãs. Monergismo, Brasília, 2013.

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Screen Shot 2014-03-12 at 1.53.54 AMPr. Carlos Mendes é casado com Roberta Mendes há 10 anos, pai do Samuel há 2, pastoreando a Igreja Presbiteriana Aliança – DF, mestre em Aconselhamento Bíblico pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.

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