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Estava na reunião de oração quando uma certa pessoa, depois de descrever com detalhes como um “filho adotivo” havia matado a facadas seu pai, pediu oração pela família e, olhando para mim, disse: “pois é, é isso que dá adotar filhos dos outros!”. Uma outra vez, uma senhora da igreja me parou no meio da rua e falou: “pastor, não se mete nisso não”. Se referindo à adoção. De uma outra feita, um ancião da igreja me disse: “o senhor não tá tentando resolver as coisas do seu jeito, não? Será que o senhor não está deixando de confiar em Deus que pode te dar um filho de “verdade”?” Essas são apenas algumas das frases que ouvimos e que ainda temos ouvido até hoje vindas de irmãos, sobre a nossa decisão de adotar. Mais do que questionamentos ou “conselhos”, essas frases revelam como muitos na igreja pensam a respeito de adoção. Muitos cristãos encaram o “filho adotivo” como aquele filho de criação, aquele enteado, ou alguém da família que os pais não tinham condições de criar e você teve que “levar” para a sua casa. É como se fossem de uma segunda categoria, não fossem descendência de verdade, ou seja, para muitos, o que realmente é importante é o material genético. Mas olhar para a adoção dessa forma é deixar de ter uma visão clara de si como alguém adotado por Deus. Vejo que, na verdade, indo mais a fundo um pouco, revela o que muitos pensam a respeito da sua própria identidade em Cristo.
Uma das metáforas usadas para qualificar a igreja que mais me encanta e fala ao meu coração é quando as Escrituras chamam a igreja de família. Na instituição em que o Samuel morava, as crianças eram mais ou menos iguais em alguns aspectos: tinham a mesma rotina, os meninos todos cortavam o cabelo à máquina, ou seja, eram todos meio parecidos. Mas quando o conhecemos, isso não foi mais importante para nós, lembro-me do pensamento que tive nos primeiros dias em que o conhecemos: você é meu filho amado em quem me comprazo, digo isso pra ele até hoje! E era isso mesmo, a partir daquele momento ele era parte da nossa família, não era nosso filho adotado, era nosso filho! (detesto usar o termo adoção como adjetivo). Nós o amamos, o conhecemos e o integramos às nossas vidas. Mas afinal não foi exatamente isso que Deus, em Cristo Jesus, fez conosco? Ele nos trouxe a uma família que já existia, não estamos nessa família por termos o direito a ela (Rm 11.11-25), estamos nela pela graça. Somos adotados! Então, porque encaramos com tanta falta de naturalidade a adoção de crianças? Acho que a resposta é simples: porque temos vergonha de admitir que nós mesmos fomos adotados, que nós não tínhamos uma família, que éramos estranhos, alienados, desvinculados. Temos vergonha, no fundo, de admitir que saímos da condição de escravos para herdeiros.
Todos aqueles que foram adotados em Cristo, são de fato desejados na casa do Pai (Ef 2.19). O que significa adoção? Ser parte de uma nova família, grupo, passamos a ter uma nova história, uma nova identidade. E não é exatamente isso o que acontece conosco quando somos feitos filhos de Deus? Passamos a fazer parte de uma nova irmandade.
Um segundo fator para a dificuldade que muitos cristãos têm em encarar com naturalidade a adoção é porque a nossa irmandade é superficial. Temos os nossos cultos, nossas reuniões de jovens, senhoras, homens e grupos de estudo. Nos aproximamos de pessoas com quem temos mais “afinidade”, ou seja, que pensam parecido, que têm uma rotina semelhante, uma aparência que nos agrada, mas parece que nos identificamos mais pelos nossos hábitos de consumo do que pela nossa irmandade em Cristo Jesus. Ser adotado em Cristo Jesus significa que todas essas questões se tornam secundárias que, na verdade, o que nos une é Cristo. Quando encontramos a nossa identidade em coisas outras que não Cristo, nos tornamos um clube, em vez de irmãos, e deixamos de retratar para o mundo um Corpo de Cristo unido.
Se levássemos a sério o fato de sermos uma família; afirmativas e perguntas grosseiras sobre o assunto seriam evitadas e, mais ainda, a adoção se tornaria algo prioritário em nossas igrejas. Lembro-me do dia em que um irmão, em um churrasco, me chamou no canto como se fosse me contar um grande segredo e me disse: “sei que você ama essa criança, mas quando você tiver seu filho de verdade, aí você vai saber o que é amor de pai pra filho”. Pensei: meu Deus, esse irmão não entende nada do Evangelho! Não entende nada de sua própria identidade! Será que ele já parou para pensar que também é adotado? E que o Pai o ama e o declara herdeiro de todas as bênçãos espirituais conquistadas por Cristo?
Portanto, a maneira como encaramos a adoção revela quem somos, revela a identidade que acreditamos ter. Será que realmente acreditamos em Rm 8.17: “Se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo”. Na cruz Jesus é abandonado, feito órfão, para que nós pudéssemos ser adotados (Fp 2.6-8). É isso que devemos aprender, a ser filhos, e não órfãos. Não há nenhuma incerteza com relação a quem o Samuel é, ele é nosso filho, nosso herdeiro, pertence à minha linhagem, nós o amamos. Antes de vir para nossa casa, o Samuel não tinha noção de que cortar o cabelo lindo que ele tem à máquina era horrível (até hoje ele pede para que cortemos), não tinha noção de quem era a mulher que cuidava dele e de mais 9 crianças na casa abrigo, não tinha noção do porquê ele estava lá, de onde ele tinha vindo, para onde ele iria, se teria uma próxima refeição, ele não tinha noção de como era o mundo fora do abrigo; aquele era o seu mundo e tudo lhe parecia normal. Assim como eu que, antes de ser adotado por Deus, não tinha noção da minha própria imundícia, ignorância, maldade e escravidão. Mas hoje o Samuel tem noção de que tem pais que cuidam dele, que o amam, que o protegem, que haverá a próxima refeição (ele come bem menos!). Assim como eu também sei que meu Pai celestial me alimentará, me sustentará, me protegerá e me ama. O que há de comum entre nós? Nós dois somos adotados. De certa forma, eu sei o que o Samuel passava porque eu passei o mesmo, eu sei da alegria que é estar em uma família, porque eu sinto a mesma alegria.
Nós recebemos “o espírito de adoção” (Rm 8.15). Como então ficar indiferente para essa questão? Como, então, ser grosseiro, perturbador, indelicado e crítico com pessoas que resolvem tomar essa atitude? Se eu sou realmente filho de Deus, então, o Samuel é realmente meu filho. Por isso eu não consigo entender como cristãos podem se sentar confortavelmente em suas igrejas, estar alegres porque seus filhos assistem desenhos bíblicos ao invés de desenhos impróprios e porque a igreja promove boas programações para crianças enquanto milhares de crianças clamam por uma família no mundo inteiro! Como os nossos corações podem ser tão atrofiados e nos esquecermos da nossa própria identidade como adotados? Como mulheres cristãs podem gastar os tubos de dinheiro em cirurgias plásticas e afirmarem que não têm condições de adotar uma criança!? Que Evangelho é esse!?
No começo, quando as pessoas faziam perguntas inadequadas e afirmações grosseiras, eu ficava irado, mas logo percebi que a minha ira se dava porque elas mexiam com algo que ia além do processo de adoção, eram perguntas que mexiam com a minha própria identidade, pois desafiavam o Evangelho que eu ensino, prego e aconselho, mexiam com o meu orgulho de ser quem eu sou, de viver como eu vivo. Na verdade, cheguei à conclusão de que estava mais preocupado em defender o que creio do que em glorificar a Deus. Como entender isso me ajudou a ser mais paciente com as pessoas!
Mas adoção não diz respeito apenas a minha origem, minha família, ela diz respeito também ao meu destino final, diz respeito à esperança e à alegria que tenho de que, tanto eu quanto a Roberta e o Samuel, um dia, seremos recebidos de braços abertos por Cristo. E aguardamos ansiosamente por ouvir a Sua voz dizendo: vinde, benditos do meu pai!
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Pr. Carlos Mendes é casado com Roberta Mendes há 10 anos, pai do Samuel há 2, pastoreando a Igreja Presbiteriana Aliança – DF, mestre em Aconselhamento Bíblico pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper.
Bom… ontem conversando com uma colega de trabalho, que adotou três irmãos e tem quatro filhos biológicos, aprendi um pouco mais sobre a vida e pude refletir. Ela afirmou que, geralmente, as pessoas que adotam são egoístas. Confesso que não entendi na hora, mas, após pensar um pouco, vi que ela estava completamente certa.
Geralmente, as pessoas que optam por adotar uma criança o fazem por falta de opção – por não poderem gerar filhos biológicos e, por desejarem ser pais, esse é o único ou último recurso.
Assim, ao decidirem, começam a estabelecer características que as satisfarão nas crianças: preferencialmente bebês; ou de, no máximo, cinco anos; pele branca; filho único (sem irmão) e sem nenhum problema físico ou mental. Parece até que estão escolhendo um filhote de cachorro pra comprar – ou seja – faltam conferir se possui todos os dentes na boca. Não percebem que estão adotando simplesmente para satisfazer os desejos egoístas do seu coração, para exibi-los
como troféus aos amigos, ou à família… sim porque ninguém quer sair por aí com uma criança fora dos padrões preestabelecidos socialmente e correr o risco de serem criticados ou olhados com indiferença, querem algo que apareça, que destaque e possa, talvez, elevar a sua autoestima.
Outra coisa que ouvi dessa colega é que “as pessoas não estão tendo menos filhos”. Quem está tendo menos filhos são os integrantes de classes sociais mais altas, pois, os mais pobres continuam tendo muitos filhos. Isso gera um desequilíbrio social. As pessoas que têm condições de cuidar bem – de oferecer uma educação moral e formal – têm hoje, no máximo, dois filhos, geralmente, um. Já aqueles que não podem oferecer uma educação moral e formal de qualidade, até porque muitos não a tiveram, e, devido aos afazeres e as próprias condições de vida limitadoras, têm quatro, cinco filhos. Ora, é só pensarmos: não existem duas sociedades – todos estarão lado a lado pelas ruas da cidade e, nessa balança, a população menos instruída, mais pobre, com menos condições de oferecer mão de obra de qualidade, conhecimentos técnicos, pensamento construtivo será, pelo menos, o dobro daquela que consegue contribuir formalmente, pois tiveram uma educação e qualidade de vida dignos. Resultado: enquanto a população menos favorecida cresce em
Progressão Geométrica, os mais abastados crescem em Progressão Aritmética, ou até diminuem.
Dessa forma, adotar, se não por um dom ou por ser o último recurso, é uma forma de contribuir socialmente para o desenvolvimento do país. É assumir a responsabilidade de passar princípios morais e éticos, conhecimentos técnicos e capacitar essas crianças a, quando adultas, avocarem papéis sociais relevantes.
Vejo muitos reclamando das desigualdades, da violência, da falta de educação das pessoas na rua, do baixo nível de desenvolvimento do país entre outras coisas, mas vejo poucos fazendo algo, assumindo para si a responsabilidade de mudar essa realidade.
Resumindo, a conversa que tive ontem foi como um tapa na cara “acorda, meu filho!”, se você não fizer sua parte, os outros tenderão a te imitar, e a omissão social diante deste fato é a responsável pelo Brasil de hoje e o de amanhã.