Em um mundo de aparências, onde a essência de uma pessoa é suplantada pelo que ela representa ser, já é muito difícil ser aceito. Em nossa época, a busca do ter em detrimento do ser é comum. A pessoa não é o que é, maso que o rótulo diz.

No Brasil, isso é muito curioso. Vejamos alguns exemplos interessantes. Se um filho diz para os pais que quer ser jogador de futebol, boa parte dos pais responderia: filho vai estudar para ser alguém na vida. Esse filho, ao ser perguntado sobre o que faz, diria: sou jogador de futebol. Qual mãe gostaria que sua filha casasse com um jogador de futebol? Poucas. Mas, se ele for o Neymar, a resposta muda de figura. Ter dinheiro, fama muda até o estereótipo de alguém. Se a pessoa é rica, não precisa nem de plástica, pois cifrões encobrirão o seu rosto. Outro exemplo clássico são os músicos. Se um músico não é famoso, boa parte de sua família falará para ele arranjar um emprego de verdade. Mas, se ele fizer sucesso, pronto! Em instantes, ele vira talentoso. A música passa a ser um dom de Deus e as pessoas o ovacionam e dizem: desde pequeno, ele era talentoso.

Em um mundo de aparências, onde o ter é mais relevante, é muito difícil aceitar algumas pessoas. Imagina se essa pessoa for uma prostituta. Bom, é claro que aqui há de se estabelecer princípios morais. A comparação não é a de profissões, mas das aparências. Uma prostituta, que hoje pode ser denominada de garota de programa, por mais elegante que seja a sua aparência, ela será discriminada em nossa sociedade. Imagina no mundo antigo.  Ou no próprio Antigo Testamento.

A palavra prostituta aparece pela primeira vez em Gn 34.31:  Responderam: Abusaria ele de nossa irmã, como se fosse prostituta?

hn”z” (z¹nâ) – essa palavra aparece 89 vezes[1] em sua forma simples (qual) e tem o sentido de cometer fornicação: relações sexuais fora do casamento e por dinheiro. O castigo para tal prática era a morte: (Gn 38. 24; Lv 21.9; Dt 22.21; Os 2.3) VanGemeren faz uma importante observação ao destacar que “na literatura sapiencial a prostituta que trabalha por dinheiro não é tão má quanto a esposa que tem intenções adúlteras (Pv 6.26)”.[2] O sentindo teológico pode ser colocado da seguinte forma: o pecado da prostituta que recebia dinheiro era menos odioso do que o pecado da esposa que se comportava ou pensava como uma prostituta.

A palavra também era usada para o povo de Deus quando traia o Senhor com outros deuses e quebrava a aliança: (Ex 34.15,16; Lv 20.5, Jz 2.17; 8.27,33; 1 Cr 5.25, Is 23.17; Ez 16. 26-28). Nesses casos, hn”z” (z¹nâ) é usado no sentido figurado. Quando Israel fazia alianças com outros povos, também essa palavra aparece significando traição do povo à aliança.[3] A palavra e o seu significado são sempre negativos e acompanhados de sentença divina.

Portanto, ser prostituta é algo ruim no conceito do Antigo Testamento e passível de morte. Nesse breve estudo, gostaria de chamar a atenção de vocês para quatro mulheres unidas por essa terrível designação: prostituta.

A primeira delas é Raabe (largo). Raabe é famosa por acolher os espias em Josué 2:1  “de Sitim enviou Josué, filho de Num, dois homens, secretamente, como espias, dizendo: Andai e observai a terra e Jericó. Foram, pois, e entraram na casa de uma mulher prostituta, cujo nome era Raabe, e pousaram ali”. É bastante curioso e, porque não dizer, estranho esses homens entrarem em casa de prostituta. Mas, é essa prostituta que os livra do rei de Jericó. O rei vai até a casa de Raabe e pede que ela os entregue. Contudo, ela fala para os espias se esconderem no telhado (v. 6).  Raabe acolhe os espias e os faz jurar que poupariam a vida dela e de sua família (Js 2.8-12). É importante notar que ela acolhe os espiais por entender que o Senhor tinha lhes dado a terra: “e lhes disse: Bem sei que o SENHOR vos deu esta terra” (vs. 9). O Senhor tinha feito uma aliança com seu povo de lhes dar a terra, portanto não falharia. Raabe fez os espias jurarem no SENHOR que eles teriam a mesma misericórdia consigo. Ou seja, que ela e sua família não seriam destruídas. É salutar perceber que ela sabe da história do povo de Israel e tinha um temor do SENHOR.

Nos versículos 12 -13 do capítulo 2, eles firmam a promessa por meio da qual Raabe e toda sua família seria preservada pelo Senhor. Nos versículos 17-20, do mesmo capítulo, Raabe tem que colocar um cordão escarlate em sua casa e todos os seus familiares deveriam estar dentro de casa para se proteger sob pena de culpa da própria morte se não cumprissem essa determinação.

O capítulo 6. 22-27 mostra o cumprimento da promessa feita à Raabe. O texto faz um contraste impressionante entre a queda de Jericó e a preservação de Raabe e de sua família. Raabe teme ao Senhor e recebe os Seus mensageiros em sua casa. Jericó é amaldiçoada, mas Raabe encontra lugar de misericórdia diante do Senhor. Sem querer forçar muito o texto, é quase natural fazermos uma associação com a promessa que Deus fizera a Abrão em Gênesis 12.1-3: “abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem” – a benção sobre a casa de Raabe segue a promessa aos que recebem Abraão, pois ela acolheu os espias do povo de Deus. Jericó, por sua vez, recebe a maldição.

Raabe é abençoada por Deus não só na preservação histórica de sua vida, mas, na preservação eterna. Raabe fica famosa não por obter dinheiro e, muito menos, por sua antiga profissão. Ela entra para história do povo de Israel de maneira magnífica, pois passa a ser exemplo de fé e obediência. Ela entra para a galeria da fé em Hebreus 11. 31. Raabe é mencionada por sua fé ao receber em paz os espias. Em Tiago 2.25, ela é um exemplo de obediência ao acolher os espias e mandá-los por outro caminho. Mais do que tudo, Raabe recebe um belo presente do Senhor, pois ela entra na genealogia do nosso Senhor Jesus Cristo. Em Mateus 1.5, é dito que “Salmom gerou de Raabe a Boaz”. A meretriz (po,rnh), ficou famosa por sua fé e obediência. Entrou na genealogia do Messias. A prostituta discriminada e sem projeção e inserção social foi elevada a uma estatura que ela jamais poderia imaginar.

É importante notar que apesar do dilema ético levantado sobre Raabe ao mentir para os soldados e o rei de Jericó, a Bíblia não se importa com isso. Não é intenção do livro de Josué levantar esse dilema. A observação é sobre a fé, a promessa, a misericórdia e os atos de fé dessa mulher. O que foi ressaltado pelo livro de Josué e confirmado pelos autores do Novo testamento é a fé e obediência de Raabe. Portanto, o dilema ético desse texto é muito mais nossa preocupação do que dos escritores da Bíblia. A observação feita sobre Raabe é sobre seu temor, fé, obediência e misericórdia.

O que ficou registrado não foi sua mentira, foi sua atitude em esconder os espias e acolher o povo de Deus.  O mais importante é a misericórdia do Senhor sobre a vida dela. Portanto, o dilema ético não passou sobre a mente dos autores. Deus manifestou graça a uma prostituta que se arrependeu e juízo à nação prostituta Jericó que não se arrependeu. Deus manifestou graça a uma excluída, incluindo-a na salvação e na genealogia do Salvador. Raabe é a manifestação maravilhosa da graça de Deus no antigo testamento. Antes mesmo de Jesus perdoar a mulher adúltera de João 8, a graça de Deus não estava encolhida. Já tinha se manifestado. A “casa” de Raabe está salva! Seus filhos estão debaixo da aliança! Ela foi sábia e edificou sua casa! É a típica mulher virtuosa de Provérbios 12.4 e 31.10.

É importante notar que quando aparece o nome de mulheres no Antigo Testamento é porque elas possuem um destaque especial. Apesar de Raabe casar-se com Salmon, pai de Boaz, o destaque fica para ela. Salmon aparece pela primeira vez no livro de Rute 4.18. A importância dele será relatada na genealogia do Messias. Entretanto, ele aparece juntamente com Raabe. É interessante notar que, além de Raabe, aparece Rute, a viúva, e Bate Seba, que é chamada de “a mulher de Urias” (Mt 1.6). Tamar também é citada. Tamar é a nora de Judá e viúva de Er, filho de Judá. Onã recusou resgatá-la como ordenava a lei de Israel. Tamar fingiu ser uma prostituta e seduz Judá para que a promessa dele seja cumprida e o resgate seja efetuado. Um dos filhos é Perez. Perez faz parte direta da ascendência de Davi (Gn 38; Mt 1.3-6; Lc 3.31-33).

Portanto, na genealogia de Cristo, aparecem mulheres excluídas que foram incluídas pela graça de Deus. Elas foram sábias, obedientes a Deus; mulheres de fé.

Outra mulher importante na história de Israel é conhecida por sua malignidade e oposição ao Senhor. O nome dela é Jezabel.


[1]  Vd. HARRIS. R. Laird et al, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 398 e VANGEMEREN, Willem A. Org. Novo Dicionário nternacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, Vl 1, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 1096.

[2] VANGEMEREN, Willem A. Org. Novo Dicionário nternacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, Vl 1, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 1096.

[3] Vd. HARRIS. R. Laird et al, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 398.

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Pr Ricardo Rios casado com Tatiana Guedes Melo e pai de Rafael e Beatriz. Igreja Presbiteriana Memorial da Barra – Salvador/Ba – Brasil. Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano José Manoel da Conceição (JMC) – São Paulo – Validação em Teologia Pela Faculdade Batista Brasileira (FBB) – Pós graduado em Metodologia do Ensino Superior pela FBB, Pós graduando Psicoterapia Psicanalítica pela Faculdade Bahiana de Medicina, Graduando em Psicologia pela faculdade Estácio de Sá, autor do blog: http://arrazoar.blogspot.com.br/