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A Graça de Deus Estendida a uma Amargurada

O apóstolo escreveu em Romanos 8.28: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. O restante do livro de Rute se concentra no modo como Deus visitou a Noemi, tratando-a com doçura e bondade, a despeito da sua amargura dirigida contra ele. Rute 1.6 introduz o conceito de que o Senhor “se lembra” do seu povo: “Então, se dispôs ela com as suas noras e voltou da terra de Moabe, porquanto, nesta, ouviu que o SENHOR se lembrara do seu povo, dando-lhe pão”. Literalmente, o texto fala de uma visitação do Senhor em benefício do povo de Israel. É interessante que a graça do Senhor se manifesta em meio a uma época turbulenta e a um povo obstinado e rebelde. Esta nota introduz a expectativa de que, apesar de a situação de Noemi ser de extrema dificuldade, Deus estava agindo, intervindo em seu beneficio e de seu povo, dando seguimento ao seu plano de redenção.

A amargura Noemi, após seu retorno para Belém, começa a provar das doces manifestações da graça do Senhor. Primeiro, através do suprimento das suas necessidades. O capítulo 2 tem início com a narrativa da ida de Rute aos campos de Boaz: “Ela se foi, chegou ao campo e apanhava após os segadores; por casualidade entrou na parte que pertencia a Boaz, o qual era da família de Elimeleque” (v. 3). Nada acontece por casualidade num mundo governado por Deus. A forma como as palavras aparecem no hebraico sugerem a existência de “algum plano subjacente ao acidental”.[1] A intenção do autor é criar exatamente a impressão oposta. Ele deseja que o leitor perceba a mão invisível de Deus agindo providencialmente, guiando todos os passos de Rute. Deus guiou, conduziu cada passo de Rute ao campo de Boaz. Jerram Barrs diz que, “a mão de Deus está nos bastidores, guiando as vidas de Rute e Noemi , porque ele gosta de cuidar daqueles que fazem dele o seu refúgio”.[2] Isso se mostra como graça estendida também a Noemi, por ter ela sido participante de tudo o que Rute colheu ali: “Esteve ela apanhando naquele campo até à tarde; debulhou o que apanhara, e foi quase um efa de cevada. Tomou-o e veio à cidade; e viu sua sogra o que havia apanhado; também o que lhe sobejara depois de fartar-se tirou e deu a sua sogra (2.17-18). Noemi começa, então, a reconhecer a boa mão de Deus naquele acontecimento: “Então, Noemi disse a sua nora: Bendito seja ele do SENHOR, que ainda não tem deixado a sua benevolência nem para com os vivos nem para com os mortos” (v. 20).

Segundo, no resgate da propriedade do seu falecido marido. Na continuação do versículo 20 do capítulo 2 aparece a figura do parente-resgatador: “… Disse-lhe mais Noemi: Esse homem é nosso parente chegado e um dentre nossos resgatadores”. Um go’el ou um resgatador era um parente próximo que possuía certas obrigações para com os membros do seu clã. No caso, Boaz era parente de Elimeleque (2.3). A lei do resgate aparece em Levítico 25.47-49: “Quando o estrangeiro ou peregrino que está contigo se tornar rico, e teu irmão junto dele empobrecer e vender-se ao estrangeiro, ou peregrino que está contigo, ou a alguém da família do estrangeiro, depois de haver-se vendido, haverá ainda resgate para ele; um de seus irmãos poderá resgatá-lo: seu tio ou primo o resgatará; ou um dos seus, parente da sua família, o resgatará; ou, se lograr meios, se resgatará a si mesmo”. O resgatador tinha o papel de comprar de volta a propriedade de algum parente, que a vendeu por falta de recursos. Ao comprar a terra de volta, o resgatador a restituía ao seu dono original: “Ao restaurar a terra a seu dono original, o go’el mantinha a herança do clã intata”.[3] Foi exatamente isso que Boaz fez. Ele comprou de volta, ou seja, resgatou a terra que pertencera a Elimeleque antes da sua ida para a terra de Moabe (4.1-9).

De que maneira a graça estendida sobre Noemi pode ser percebida? De acordo com Levítico 25.23, a terra e as propriedades nela, em última análise, pertenciam ao Senhor, não às famílias de Israel: “Aqueles que pertencem a Deus são, de fato, seus inquilinos, em vez de proprietários absolutos de suas propriedades e bens”.[4] As famílias de Israel receberam a sua porção de terra quando entraram na terra de Canaã. Deus concedeu a cada tribo uma parte da terra. Ele deu. De graça. Pela graça. Isto posto, Deus se mostra gracioso para com Noemi, ao agir de forma providencial levantando Boaz para resgatar a terra com que ele, o Senhor, em sua graça, outrora abençoou Elimeleque e toda a sua família. A terra uma vez recebida pela graça, retorna também pela graça. Assim, a mulher que até pouco tempo não possuía nenhuma perspectiva de sustento é graciosamente sustentada pelo Senhor do Pacto.

Terceiro e último, a graça também se manifesta na suscitação de descendência. O resgatador também tinha a obrigação de casar com a viúva de um parente falecido, a fim de cuidar dela e de suscitar a sua descendência: “Se irmãos morarem juntos, e um deles morrer sem filhos, então, a mulher do que morreu não se casará com outro estranho, fora da família; seu cunhado a tomará, e a receberá por mulher, e exercerá para com ela a obrigação de cunhado. O primogênito que ela lhe der será sucessor do nome do seu irmão falecido, para que o nome deste não se apague em Israel” (Deuteronômio 25.5-6; cf. Gênesis 38). Rute fora casada com Malom (4.10). Quiliom, seu cunhado também era morto. O resgatador mais próximo que Boaz não pôde casar com Rute e, assim, resgatá-la (4.6). Assim, Boaz cumpriu a lei do levirato, casando-se com Rute e suscitando a descendência de Malom, filho de Noemi: “Assim, tomou Boaz a Rute, e ela passou a ser sua mulher; coabitou com ela, e o SENHOR lhe concedeu que concebesse, e teve um filho” (4.13).

A criança concebida por Rute foi considerada pelas vizinhas de Noemi como seu filho (4.17). Foram as vizinhas que ouviram a amarga resposta dela, em 1.20-21. Agora, com o nascimento daquela criança, elas oferecem uma alegre e feliz réplica ao lamento de Noemi. Diz Ulrich: “As mulheres de Belém, que anteriormente haviam encontrado uma Noemi derrotada e desanimada em retorno de Moabe, não puderam conter o louvor dela pelo nascimento do primeiro filho de Rute”.[5]

Imagine uma mulher viúva, sem filhos, completamente desamparada, sem perspectiva de sustento e, ainda por cima, com profundas raízes de amargura em seu coração. Imagine também que sua amargura não é dirigida a qualquer pessoa. Antes, é dirigida a Deus. Providencialmente, essa mulher tem a sua sorte transformada. Tem a propriedade do seu falecido marido resgatada, obtém o sustento das suas necessidades e, além disso, recupera a sua descendência através do nascimento de um neto. Isto é graça! Os nomes do seu esposo e de seu filho não seriam apagados de Israel.

A graça se mostra mais fulgurante quando, na conclusão do livro, é dito que aquela criança não era uma criança qualquer. Tratava-se daquele que seria o avô do grande rei Davi (4.17). Os dias anárquicos e sombrios dos juízes não seriam a realidade última. Deus estava agindo. Ele estava trabalhando, através de todos os acontecimentos, na vida do seu povo. Começava a despontar no horizonte a época áurea quando Israel seria governada por alguém segundo o coração de Deus. Mais ainda, o nascimento de Obede apontava para o nascimento futuro do grande descendente de Davi. Uma mulher viúva e sem filhos seria a avó de alguém que pertenceria à linhagem do Messias.

Aplicação

O que aconteceu com Noemi muitas vezes acontece conosco. Como ela, estamos sujeitos às mais diversas vicissitudes, sofrimentos e dores. Enfermidades, decepções, traições, luto, além de outras coisas, são constantes em nossas vidas. A grande questão, então, torna-se esta: Como reagimos às situações dolorosas que nos sobrevêm? Enxergamos tais situações como parte do plano de Deus? Reconhecemos a soberania de Deus sobre todos os eventos que nos sucedem? Somos sensíveis à verdade de que o Senhor, nosso Deus, em todas as coisas está agindo segundo o seu soberano propósito? Além disso, juntamente com a sua soberania, reconhecemos a bondade do Senhor para conosco justamente quando somos acossados pelas tempestades da vida? Estão abertos os nossos olhos para a verdade de que Deus está fazendo algo bom exatamente quando estamos atravessando o vale da sombra da morte? Isso é importante, pois foi justamente aqui que Noemi falhou. Reconhecer a soberania de Deus sobre os eventos da sua vida sem enxergar a sua bondade a levou a uma compreensão errada a respeito dos atos do Senhor, e também fez com que a amargura lançasse raízes profundas em seu coração.

Quando você, mulher, experimentar a dor, não importando qual seja a circunstância, veja nisso a oportunidade para reconhecer que Deus “não só está no controle, mas ele também está fazendo algo bom, ou seja, a realização de seu plano de redenção e o aperfeiçoamento do seu povo”.[6] Tenha sempre em mente as sábias palavras de A. W. Tozer: “O que vem à nossa mente quando pensamos a respeito de Deus é a coisa mais importante sobre nós […] É impossível manter saudáveis nossas práticas morais e corretas nossas atitudes interiores enquanto a nossa ideia a respeito de Deus for errônea ou inadequada”.[7]

Definitivamente, a graça supera a amargura.


[1] Robert L. Hubbard Jr. Comentários do Antigo Testamento: Rute. p. 196.

[2] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women in The Bible. pp. 139.

[3] Robert L. Hubbard Jr. Comentários do Antigo Testamento: Rute. p. 256.

[4] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women in The Bible. pp. 145.

[5] Dean R. Ulrich. Da Fome para a Fartura: O Evangelho Segundo Rute. p. 126.

[6] Ibid. p. 38.

[7] A. W. Tozer. The Knowledge of the Holy. New York, NJ: Harper Collins, 1961. pp. 1,3.

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* Rev. Alan Rennê é Pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Tucurí, Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste, em Teresina -PI (2005), e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo -SP (2010). Cursa o  Sacrae Theologiae Magister S.T.M, com área de concentração em Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo-SP. Escreve no blog Cristão Reformado.