“Débora, profetisa, mulher de Lapidote, julgava a Israel naquele tempo” (Juízes 4.4).

Numa época marcada pelas reivindicações do movimento feminista, a figura de Débora pode parecer atrativa. Frequentemente apelos são feitos à narrativa sobre Débora, na tentativa de validar práticas, como a pregação feminina no culto público solene e até mesmo a ordenação feminina aos sagrados ofícios. Linda Belleville, uma feminista radical, na ânsia por legitimar a ordenação feminina, afirmou que, “Débora era tão respeitada que o comandante das suas tropas recusou-se a ir à batalha sem ela”.[1] Não obstante, o propósito da passagem de Juízes 4 não é ensinar a legitimidade do ministério feminino ou a pregação no culto público solene. O objetivo não é afirmar a proeminência da mulher em relação ao homem.

É preciso recordar o contexto no qual Débora viveu, a fim de compreendermos devidamente a passagem, e para que possamos retirar algumas aplicações práticas.

Um Tempo de Constante e Flagrante Desobediência

De forma específica, a narrativa sobre Débora está localizada logo após a narrativa sobre os juízes Otniel (vv. 7-11) e Eúde (vv.15-31), no capítulo 3. Estes dois juízes lideraram com bravura o povo de Deus e, com a ajuda do Senhor, libertaram Israel da opressão do rei da Mesopotâmia e dos moabitas. Sob Otniel o povo desfrutou de um período de quarenta anos de paz. O versículo 30 diz que, após o livramento recebido por meio de Eúde, “a terra ficou em paz oitenta anos”. Contudo, a despeito da provisão de Deus nestes dois livramentos extraordinários e nos períodos de paz que se seguiram, as pessoas, mais uma vez, “tornaram a fazer o que era mau perante o SENHOR, depois de falecer Eúde” (4.1). Como consequência, Deus as entregou nas mãos de um novo inimigo, Jabim, rei de Canaã, que oprimiu a Israel durante vinte anos (4.2,3).Sou de opinião que a pessoa deve iniciar a leitura de Juízes pelo último versículo do livro e, logo em seguida, retornar ao capítulo 1. A afirmação de Juízes 21.25 é chave para a devida compreensão do livro, bem como de situações específicas narradas nele: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”. Além disso, há uma afirmação que soa como um refrão ao longo do livro: “Então, fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o SENHOR” (2.11; Cf. 3.7,12; 4.1; 6.1; 10.6; 13.1). A dinâmica do livro é a seguinte: Deus abençoava o povo, advertia o povo contra o perigo de se associarem com os povos ímpios, e o povo de Israel respondia com o pecado, com a transgressão: “Quando o SENHOR lhes suscitava juízes, o SENHOR era com o juiz e os livrava das mãos dos seus inimigos, todos os dias daquele juiz; porquanto o SENHOR se compadecia deles ante os seus gemidos, por causa dos que os apertavam e oprimiam. Sucedia, porém, que, falecendo o juiz, reincidiam e se tornavam piores do que seus pais, seguindo após outros deuses, servindo-os e adorando-os eles; nada deixavam de suas obras, nem da obstinação dos seus caminhos”(2.18-19). E à medida que lemos o livro por inteiro percebemos que a situação em toda a nação só se agrava. O resultado disso, é que as pessoas viviam de acordo com a filosofia do “eu acho”, cada um fazia o que dava vontade. Era uma verdadeira anarquia. Jerram Barrs afirma que, “o período coberto pelo livro de Juízes é um tempo de vários séculos, um tempo prolongado de apostasia, um tempo quando a maioria do povo pactual tinha se desviado de Deus”.[2]É nesse contexto que Débora aparece.Uma Mãe em Israel
Diferentemente do que aconteceu com Otniel e Eúde, que foram diretamente suscitados por Deus, Débora já aparece no capítulo 4 julgando “a Israel naquele tempo” (v. 4). Rebecca Jones afirma que, “Débora não é um dos juízes mencionados como sendo diretamente chamados por Deus, embora não haja dúvidas de que ele a usou”.[3]

O texto nos apresenta uma pequena, porém suficiente descrição de Débora. Ela era uma profetisa, esposa e juíza.

Em primeiro lugar, Débora era uma profetisa. Além dela, apenas outras três mulheres no Antigo testamento foram chamadas de “profetisa”: Miriã, irmã de Moisés (Êxodo 15.20), Hulda (2Reis 22.14-20) e uma mulher que, possivelmente, era a esposa do profeta Isaías (Isaías 8.3). Débora não pregava a Palavra de Deus às pessoas. Ela era uma profetisa, não uma pregadora. Como profetisa, Débora anunciava a Palavra de Deus de forma inspirada, inerrante e autoritativa. O dom de profecia dado a Débora é de natureza absolutamente diferente do dom vinculado à pregação. No texto, Débora não expôs as Escrituras nem ao povo reunido solenemente nem a Baraque individualmente. Em vez disso, ela apresentou a mensagem do Senhor de forma preditiva: “Porventura, o SENHOR, Deus de Israel, não deu ordem, dizendo: Vai, e leva gente ao monte Tabor, e toma contigo dez mil homens dos filhos de Naftali e dos filhos de Zebulom? E farei ir a ti para o ribeiro Quisom a Sísera, comandante do exército de Jabim, com os seus carros e as suas tropas; e o darei nas tuas mãos […] Certamente, irei contigo, porém não será tua a honra da investida que empreendes; pois às mãos de uma mulher o SENHOR entregará a Sísera” (vv. 6,7,9). É importante notar também que, ela não profetizava como Isaías, Jeremias, Micaías e tantos outros profetas, isto é, de maneira pública. Ela profetizava em particular, quando procurada pelos filhos de Israel.

O fato de Débora ser uma profetisa era algo extraordinário, fora do comum. Não era algo normal. A própria ordem do texto hebraico deixa isso transparecer: Débora-mulher-profetisa-mulher de-Lapidote-ela julgava-Israel-no tempo dela. O texto hebraico traz a palavra “mulher” logo após a menção do nome Débora. Esta palavra não tem a função de simplesmente definir que se tratava de uma “profetisa”, pois o termo hebraico nebhia já é feminino. Antes, o texto transmite a ideia de algo surpreendente: Não há profetas! Nem juízes!

Em segundo lugar, Débora era uma esposa. A única passagem do Antigo Testamento onde Lapidote é mencionado é em Juízes 4.4. Não há nenhuma afirmação adicional a respeito da sua pessoa nem de sua história com Débora. Não obstante, é suficiente perceber o destaque que o texto dá a Débora como sendo uma esposa, uma auxiliadora do seu marido que, mesmo julgando o povo de Israel, certamente cuidava de sua família e do seu lar. É importante também perceber que, antes de ser profetisa e juíza, ela era uma esposa. Enquanto o fato de ser profetisa aparece como algo extraordinário, o seu papel como esposa se enquadra dentro do papel ordinário que o Senhor lhe concedeu. O seu chamado para ser esposa e, talvez, mãe, vinha antes da sua atribuição como profetisa e juíza de Israel.

Terceiro, Débora era uma juíza. Necessariamente não significava que Débora ocupava alguma posição de liderança em Israel. De forma errônea a Nova Versão Internacional traduz o versículo 4, dizendo que Débora “liderava Israel naquela época”. Porém, com exceção dessa passagem e de 3.10, a NVI traduz todas as ocorrências do verbo shaphat como “julgar”. Antes, significa simplesmente “decidir controvérsia, discriminar entre pessoas nas questões civis, políticas, domésticas e religiosas”.[4] Isso não significa que ela ocupava uma liderança de governo em Israel, visto que ela atendia às pessoas “debaixo da palmeira de Débora” e “os filhos de Israel subiam a ela em juízo” (v. 5). Ademais, Débora reafirmou a liderança masculina ao dizer a Baraque ele deveria liderar as tropas de Israel contra Sísera (vv. 6-7). Thomas Schreiner afirma que, “ela parece ser o único juiz em Juízes que não tem função militar. Os outros juízes também lideravam Israel em vitória nas batalhas, mas Débora recebe uma palavra de Deus para que Baraque faça isso”.[5] É interessante que, diante da covardia de Baraque, ela não arroga para si a tarefa de convocar o povo para a batalha. Ela o repreende por sua hesitação e anuncia, de maneira profética, que mesmo vitorioso na batalha, a honra seria concedida a uma mulher (v. 9). Então, longe de reivindicar a liderança para si, Débora reafirma a liderança masculina numa época em que os homens se mostravam negligentes.

O que isso significa para as nossas irmãs, mulheres piedosas? Podemos apontar algumas aplicações:

Primeiro, nossas irmãs devem compreender que a narrativa sobre Débora não as estimula a desejarem o ofício da pregação pública. Mulheres piedosas compreendem que a verdadeira piedade é encontrada na obediência. Sendo assim, mulheres piedosas se contentarão no exercício das funções que lhes foram atribuídas pelo Senhor, e não se firmarão nas interpretações igualitaristas a respeito das profetisas da Escritura, como Débora, por exemplo. Aprendemos com o exemplo não apenas de Débora, mas também de Hulda e Miriã, que elas não eram “pregadoras ou professoras públicas. Não estabeleceram padrões doutrinários ou morais para a família da aliança”.[6] A razão para isso, é que “profecia difere de pregação. Profecia é baseada sobre revelação espontânea (1Coríntios 14.29-33a), enquanto pregação é uma exposição da revelação recebida”.[7]

Apesar de não profetizarem como Débora, mulheres piedosas oferecerão sábios conselhos fundamentados na Palavra a todos aqueles que necessitarem de sua ajuda. Mulheres sábias aconselharão homens que as escutarão e adotarão as suas ideias.

Segundo, nossas irmãs devem compreender que a maior realização de uma mulher cristã e piedosa é a assunção do seu papel como auxiliadora idônea e esposa. Como tal, ela compreende que não escrava ou serva do seu marido. Antes, ela o vê, nas palavras do Rev. David Lipsy: “com reverência, uma mistura de amor e temor, não, contudo, um ‘temor’ de escravo, que é nutrido com ódio ou aversão; mas um temor nobre e generoso, que procede do amor”.[8]

Terceiro, mulheres piedosas não enxergarão a claudicância dos homens em assumir a liderança no lar e na igreja como uma oportunidade para a assumirem. Vivemos numa época marcada pela feminização dos homens, sendo que uma das suas características é a relutância em assumir o papel de líder, provedor, sustentador e defensor. Com Débora aprendemos que o papel das mulheres piedosas nessa situação é o de estimular e repreender, em particular, os homens, no lar e na igreja, para que honrem o seu chamado. Grudem diz: “A história de Débora deve motivar as mulheres nessa situação a fazerem o que ela fez: encorajar e exortar o homem a assumir o papel de liderança para o qual foi chamado por Deus, assim como Débora encorajou e exortou a Baraque”.[9]

Uma Mãe em Busca de um Príncipe para o seu Povo

Diante da omissão masculina, Débora se levantou como uma mãe em Israel (Juízes 5.7). Na canção registrada neste capítulo Débora fala da situação preocupante da nação diante dos ataques dos inimigos: “cessaram as caravanas; e os viajantes tomavam desvios tortuosos. Ficaram desertas as aldeias em Israel, repousaram, até que eu, Débora, me levantei, levantei-me como mãe em Israel. Escolheram-se deuses novos; então, a guerra estava às portas; não se via escudo nem lança entre quarenta mil em Israel” (vv. 6-8). Era uma época terrível: “Era um tempo sem confiança no Senhor, um tempo de covardia e medo, e, consequentemente, um tempo terrível para o povo”.[10] Então, as palavras de Débora demonstram que ela aguardava um valente, um príncipe em Israel.

É interessante que, tanto no início do livro como no final há um clamor por um libertador: “Quem dentre nós, primeiro subirá aos cananeus para pelejar contra eles?” (1.1b); “Quem dentre nós subirá, primeiro, a pelejar contra Benjamim?” (20.18). Não há ninguém, dentre o povo, capaz de livrar a Israel definitivamente dos seus inimigos: “O clamor de Débora por um príncipe em Israel não é satisfeito pelos barraques do mundo. O verdadeiro herói é o bebê que virá um dia, o Salvador prometido sobre quem as tentações de Dalila não terão nenhum poder e contra o qual nenhum inimigo, quer físico ou espiritual, pode prevalecer”.[11]

A lição é clara: Mulheres piedosas devem ser fiéis e buscar agir como Débora em nossa época marcada pelos reclamos. Entretanto, devem saber que seus anelos mais profundos só podem ser satisfeitos pelo Senhor Jesus, o Príncipe da paz, que venceu todos os seus inimigos.

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[1] Apud in Wayne Grudem. Confrontando o Feminismo Evangélico. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 70.

[2] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women In The Bible. Wheaton, IL: Crossway, 2009. p. 105.

[3] Rebecca Jones. A Mulher Segundo a Bíblia: O Cristianismo Oprime as Mulheres? São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 80.

[4] Francis Brown, S. R. Driver e Charles A. Briggs. A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament. In: BIBLEWORKS 7.0.

[5] Thomas R. Schreiner. “The Ministries of Women in the Contexto f Male Leadership”. In: John Piper e Wayne Grudem (Eds.). Recovering Biblical Manhood & Womanhood: A Response to Evangelical Feminism. Wheaton, IL: Crossway, 2006. p. 216.

[6] Dan Doriani. Mulheres e Ministério. São Paulo: Cultura Cristã, 2009. p. 34.

[7] Thomas R. Schreiner. “The Ministries of Women in the Contexto f Male Leadership”. In: John Piper e Wayne Grudem (Eds.). Recovering Biblical Manhood & Womanhood: A Response to Evangelical Feminism. pp. 216-217.

[8] David Lipsy. A Mulher Puritana. São Paulo: Os Puritanos, 2011. p. 19.

[9] Wayne Grudem. Confrontando o Feminismo Evangélico. p. 72.

[10] Jerram Barrs. Through His Eyes: God’s Perspective On Women In The Bible. p. 106.

[11] Rebecca Jones. A Mulher Segundo a Bíblia: O Cristianismo Oprime as Mulheres? p. 81.

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* Rev. Alan Rennê é Pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Tucurí, Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico do Nordeste, em Teresina -PI (2005), e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo -SP (2010). Cursa o  Sacrae Theologiae Magister S.T.M, com área de concentração em Estudos Históricos e Teológicos e linha de pesquisa em Teologia Sistemática, no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, São Paulo-SP. Escreve no blog Cristão Reformado.